27 setembro 2016

Estamos no Bom Caminho







É preciso perceber a que brincam as crianças e se estão felizes

Aida Figueiredo, investigadora da Universidade de Aveiro, constatou que os mais pequenos passam apenas 10,8% do tempo nos recreios dos edifícios de apoio à infância. Estudos nacionais indicam que as crianças gostam de espaços que envolvam mistério, magia, desafios, possibilidades de sentir.



As crianças passam pouco tempo nos espaços exteriores das creches e jardins de infância. O primeiro estudo nacional sobre a interação que acontece nesses locais revela que os mais pequenos passam 10,8% do tempo fora dos edifícios e que há poucos estímulos para níveis elevados de atividades motoras. Aida Figueiredo, investigadora do Departamento de Educação e do Centro de Investigação e Didática e Tecnologia na Formação de Formadores da Universidade de Aveiro, olhou com atenção para 16 crianças, com idades entre os quatro e os cinco anos, de quatro jardins de infância de Aveiro e de Coimbra.

A investigadora concluiu que as atividades fora das salas não promovem a autonomia, a liberdade, o desafio e a exploração. “O brincar por si, como algo inerente e fundamental à espécie humana, e particularmente à infância, parece ter deixado de ser efetivamente valorizado”, refere nesta entrevista ao EDUCARE.PT.

A dimensão histórico-cultural e social pode ajudar, em parte, a explicar os resultados. A formação de educadores e professores é feita no interior e não no exterior dos edifícios. Os pais andam preocupados com o sucesso escolar dos filhos e o ministério também. As atividades disponíveis são estruturadas e são dirigidas por adultos. Para Aida Figueiredo, a contextualização dos espaços é fundamental e a postura dos adultos é importante. “É necessário que os adultos percecionem as crianças como seres competentes e com capacidades e não os impeçam de vivenciar as experiências que surgem”, afirma. “Não estamos a falar de situações extremadas em que se colocam as crianças em perigo, mas é necessário fazermos uma reflexão sobre o tipo de controlo que estamos a exercer sobre os mais novos e as oportunidades que lhes estamos a proporcionar”, acrescenta.

EDUCARE.PT: Concluiu, na sua investigação, que as crianças das creches e jardins de infância, com quatro e cinco anos, passam pouco tempo nos recreios. O que se passa?
Aida Figueiredo (AF):
 Prefiro não utilizar a palavra “recreio”. Na verdade “recreio”, recess em inglês, significa que há um espaço/tempo para trabalhar e outro para brincar, o que não deve ser a realidade da creche e do jardim de infância. Relativamente ao tempo que as crianças passam nos espaços exteriores, e estamos a falar de crianças com idades entre os quatro meses e os cinco anos, os resultados do estudo realizado evidenciam que as crianças participantes permanecem no exterior 10,8% do tempo total passado nos centros de apoio à infância (creches e jardins de infância), sendo o tempo dedicado ao jogo livre apenas uma pequena fração deste tempo, e por períodos que oscilam, em média, entre 30 e 50 minutos.

Tendo presente os benefícios da permanência no exterior e comparando os resultados do estudo aqui referido com os realizados, na Noruega, por Moser e Martinsen (2010) – que indicam um tempo efetivo médio de permanência no exterior de 70,2% no verão e de 30,6% no inverno, não obstante as condições climatéricas verificadas neste país nórdico –, e por Lysklett (2005) – em que as crianças permanecem no exterior, em atividades de jogo livre, de duas a seis horas por dia no inverno e mais de seis horas no verão, ou seja das 9 às 15 horas –, é inevitável o questionamento sobre os possíveis fatores subjacentes a estes resultados, mesmo considerando eventuais diferenças metodológicas e limitações do presente estudo.

Quanto à(s) causa(s) para os resultados encontrados, apenas podemos levantar hipóteses, uma vez que o objeto e objetivos do estudo não contemplaram esta dimensão, daí a realização do estudo que está a decorrer neste momento. Uma das possíveis causas é a dimensão histórico-cultural e social de interior que apresentamos atualmente – a formação dos educadores e professores ocorre essencialmente no interior, os pais parecem estar preocupados com o sucesso académico dos filhos desde muito cedo, apostando em atividades estruturadas e dirigidas por adultos, e as políticas educativas corroboram estas preocupações ou são a origem das mesmas…

A vivência das condições climatéricas pelos educadores e pais destes quatro jardins de infância pode ser um outro fator explicativo dos resultados emergentes neste estudo. Na verdade, os dados obtidos indicam uma correlação significativa e positiva, embora fraca, entre a duração das saídas para o exterior e a temperatura do ar, oscilando as temperaturas médias entre os 14,1°C e os 21,7°C. A chuva pode igualmente ser considerada um entrave às saídas para o exterior, pois os resultados indicam que as saídas nestas condições climatéricas são em número reduzido (19,3%) e que se efetuaram antes ou depois da chuva e nunca durante a sua ocorrência. 

O brincar por si, como algo inerente e fundamental à espécie humana, e particularmente à infância, parece ter deixado de ser efetivamente valorizado, embora, e de acordo com os estudos realizados por Bergen (1987), Frost (1992) e Stone (1999), a maioria dos educadores considere o brincar livre como um processo natural de aprendizagem das crianças e uma estratégia fundamental no processo educativo. Para a realização deste estudo foi feita uma análise de alguns documentos norteadores das práticas pedagógicas em países da OCDE, nomeadamente Noruega (Framework Plan for the Content and Tasks of Kindergarten, 2011), Irlanda (Aistear, The Early Childhood Curriculum Framework, 2009) e Portugal (Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar, 2002; Lei n.º 5/97 de 10 de fevereiro, 1ª Série-A, Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar, 1997; Despacho Conjunto n.º 268/97, de 25 de agosto, 1997).

O que se constatou foi que a base dos documentos é similar em Portugal e na Irlanda, com o foco principal na aprendizagem e no desenvolvimento, sendo o brincar perspetivado como uma estratégia de desenvolvimento curricular. No que diz respeito à Noruega, constata-se que o brincar é considerado como intrínseco à criança e que o papel fulcral da creche e do jardim de infância é contribuir para uma infância feliz, criando oportunidades para brincar, uma vez que esta atividade é extremamente importante para o bem-estar, para além de ser um aspeto fundamental da vida e da aprendizagem da criança.

E: Os recreios estão esvaziados de sentido? Refere que as atividades livres fora das salas são pobres, não promovem a autonomia e liberdade, o desafio e a exploração.
AF: 
Desde logo o tempo passado no exterior é fundamental para que as crianças interajam com o espaço de forma ativa e esta interação deve envolver desafio, movimento, exploração e descoberta. Esta dimensão, tempo, já percebemos que está pouco presente no dia-a-dia destas crianças.

Outra dimensão essencial são as qualidades, e não qualidade, do espaço, mais precisamente as oportunidades de ação que proporciona em cada criança e no grupo. Quando falamos em oportunidades de ação, referimo-nos ao que verdadeiramente acontece no exterior, sendo prioritária a observação sistemática das crianças com o espaço – a que brincam as crianças e como o fazem? Com quem? Parecem felizes e envolvidas no que estão a fazer ou deambulam pelo espaço sem se fixarem em nada? Estas questões podem ajudar o educador e os pais a perceberem se o espaço em questão vai ao encontro dos interesses e necessidades da criança e do grupo e qual a qualidade das interações estabelecidas. A contextualização dos espaços é fundamental, os espaços estereotipados, como se veem nos atuais centros escolares, não são a solução, para além de serem extremamente dispendiosos.

A atitude do educador/pais é outra dimensão incontornável. Para que ocorra a promoção de autonomia, liberdade, desafio, exploração e descoberta é necessário que os adultos percecionem as crianças como seres competentes e com capacidades e não os impeçam de vivenciar as experiências que surgem. Não estamos a falar de situações extremadas em que se colocam as crianças em perigo, mas é necessário fazermos uma reflexão sobre o tipo de controlo que estamos a exercer sobre os mais novos e as oportunidades que lhes estamos a proporcionar.

E: Recreios despidos e que pouco estimulam o movimento e a exploração. Perante este cenário, qual deve ser o papel dos educadores? E qual deve ser o papel dos pais?
AF:
 Todos os adultos querem o melhor para as crianças, sejam pais, educadores ou professores. No entanto, algumas atitudes que ocorrem aquando de práticas no exterior devem ser objeto de reflexão/questionamento. A mudança de atitude do adulto face às vivências – diversas e, por vezes, complexas – das crianças no exterior é um processo que necessita de tempo e suporte, dados os receios, fantasmas e dúvidas que emergem com frequência.

Relativamente aos educadores, professores e políticos, os espaços exteriores devem ser perspetivados como um espaço tendo uma identidade própria, tal como o interior, essencial à infância. Penso que as instituições de Ensino Superior também têm um papel fundamental neste domínio (papel e importância dos espaços exteriores na infância), quer ao nível da formação quer ao nível da investigação. 

E: Na investigação que faz em Aveiro e Coimbra, constata que o jogo livre quase desapareceu dos espaços exteriores. As brincadeiras estão a mudar? No fundo, o que deve ser um espaço exterior?
AF:
 Talvez as brincadeiras estejam a mudar, não o posso afirmar. Sabemos que o brincar é um “constructo” histórico-cultural e social determinado pela sociedade em que a criança se encontra inserida. Assim, é obrigatória uma avaliação sistemática do que se passa no exterior, tal como já foi referido.

Quanto à questão do que deve ser um espaço exterior, os estudos nacionais e internacionais revelam que as crianças referem como espaços ideais os que envolvem mistério, magia, complexidade, desafio, possibilidades de sentir, pensar, agir e criar, bem como espaços que integrem diversidade de elementos – manufaturados e da natureza –, alterações na topografia, lugares de intimidade e onde ocorram a mudança e a possibilidade de construção e reorganização do espaço – dimensões catalisadoras da curiosidade e do desejo de movimento e de exploração, indispensáveis ao bem-estar, à aprendizagem e ao desenvolvimento. Todavia, a par da mudança e da incompletude (open-ended space), o espaço deve ser percecionado pelas crianças como um todo coerente e legível – constituído por diferentes e diversas partes –, permitindo a fluidez e a flexibilidade entre as áreas – dimensões promotoras do movimento ativo e contínuo das crianças, bem como do questionamento e da tomada de decisão.

E: É preocupante que crianças pequenas não sejam estimuladas para níveis elevados de atividade motora?
AF:
 Muito preocupante. O professor Carlos Neto há décadas que alerta para esta situação. Os resultados evidenciam que estas crianças apresentam predominantemente ações motoras dos braços e mãos, permanecem de pé e andam distâncias iguais ou inferiores a 10 metros. O contacto do corpo com o chão é raro (ex. deslizar, rastejar, gatinhar,…), bem como atividades que exijam equilíbrio e desafio como trepar, pendurar-se ou ficar suspenso. Os resultados revelam ainda que as crianças que participaram no estudo não apresentam ações motoras intensas nem com qualidade, ou seja, com elevado dispêndio de energia ou ações que requerem elevada coordenação, concentração ou persistência.

E: O assunto exige, portanto, reflexão. Tem defendido iniciativas integradas, articuladas e transdisciplinares, que envolvam as crianças, os pais, a comunidade e os contextos de apoio à infância. O que pode ser feito?
AF: 
Investigação, sensibilização, formação e intervenção. Todas estas vertentes devem estar interligadas e sustentadas, englobando os diferentes atores que referiu. No entanto, devem ser objeto de avaliação cuidada: faz-se porquê, com quem, quando, onde e como! Caso contrário podemos estar perante um modismo e não é o que se defende quer a nível nacional quer internacionalmente.

E: Até que ponto é importante perceber quais são os obstáculos e os fatores que facilitam as práticas em espaços exteriores. Será feito um questionário aos educadores para perceber dificuldades e expectativas?
AF: 
De momento, a Universidade de Aveiro – Departamento de Educação (UA-DE), o Instituto Politécnico de Coimbra – Escola Superior de Educação de Coimbra (IPC-ESEC) e a APEI (Associação de Profissionais de Educação de Infância) estão a realizar um estudo exploratório, recorrendo a inquérito por questionário, que visa compreender a perspetiva dos educadores de infância face à temática dos espaços exteriores em contextos de infância, de modo a proporcionarmos uma resposta mais adequada às pessoas que pretendam realizar práticas no espaço exterior e que sintam necessidade de suporte/formação. Ainda estamos numa fase inicial, esperamos ter alguns resultados analisados em junho de 2016.

E: Anunciou a criação de uma estrutura complementar ao pré-escolar, em Coimbra, para que os mais pequenos usufruam dos espaços exteriores na sua plenitude. Qual é a ideia? Qual o ponto de situação?
AF: 
A ideia do projeto partiu de duas professoras do IPC-ESEC e estendeu-se à UA-DE e ao CASPAE (Centro de Apoio Social de Pais e Amigos da Escola n.º 10). É um projeto de intervenção educativa e de formação que visa promover respostas educativas em espaços exteriores, proporcionando um programa complementar à oferta educativa em vigor e que permita às crianças usufruir do contacto direto com a natureza. O projeto está numa fase de preparação, prevendo-se uma maior estruturação em dezembro deste ano.
Fonte : http://www.educare.pt/

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